“Como ser fotógrafo de guerra: a câmera como vínculo com o conflito”. O título por si só não lhe levaria a ler o artigo da revista do avião, embora o assunto fosse até interessante. No entanto, naquela tarde, indo para sua cidade natal para enfrentar o funeral e enterro de sua mãe, seu ânimo não estava muito para textos interessantes.
O que realmente lhe chamou a atenção ao texto, foi o nome do autor: Roberto Gomes. Também conhecido como seu irmão. Achou que poderia ter uma idéia, mesmo que distante, de quem era o irmão. Não o que o levava a ter a profissão que tinha – isso ele já havia desistido há muito tempo –, mas sim quem ele era.
Dois irmãos, personalidades diferentes. Nada mais clichê do que isso, mas ainda o incomodava. E incomodava ainda mais no dia de hoje, ao perceber que teria que ligar para ele e contar do ocorrido.
Ainda se lembrava de como foi quando seu pai morreu. A falta de emoção no rosto do irmão, sua insensibilidade com o que acontecia à sua volta, como se tudo fossa apenas um grande inconveniente.
E a máquina fotográfica. Por que levar a maldita máquina para o funeral? Ficou tirando fotos adoidado, uma atrás da outra. Aquilo lhe incomodou tanto que passou todo o cerimonial evitando olhar para o irmão.
Depois do enterro, ainda aquele rosto impávido, fleumático. Quando questionado o porquê de tanto desdém pelo pai, a resposta de seu irmão veio como uma citação: “Eu não amava, mas ansiava por amar”.Mais tarde descobriu se tratar de uma frase de Santo Agostinho, mas naquele momento, aquelas palavras soaram tão hediondas aos seus ouvidos que decidiu não mais falar com o irmão.
E tem sido assim desde então. O dia de hoje veio para mudar isso – pelo menos temporariamente. Tinha que ligar pro irmão, onde quer que ele estivesse – provavelmente em mais um país imundo da África onde as pessoas ficam se matando dia após dia.
Ao chegar a sua antiga casa, foi direto ao telefone. Queria se livrar logo daquilo. A conversa não foi das melhores. Nem tanto pela distância física da ligação, quanto pela distância psicológica – seu irmão passou a ligação inteira sem alterar seu tom de voz, monocórdio, enquanto ele se debulhava em lágrimas.
Ao final da ligação, sentiu-se pequeno. Pequeno e só.
Três dias depois, quando finalmente se encontram, a promessa feita ao final da ligação de não mais chorar na presença do irmão se esvai junto com suas lágrimas. Seu irmão tenta lhe consolar com uma fleuma que chega a lhe agredir. Quando não suporta mais a impassividade do irmão, começa a gritar com ele. Acusa-o de ter visto tanta morte, tanta desgraça, tanta merda nos países por onde viaja que não consegue sentir mais nada, nenhuma emoção. O irmão escuta tudo, de olhos fechados, sem falar nada. Quando termina de gritar, vê apenas o irmão abrir os olhos (tão sem vida quanto antes daquele show todo) e ir embora, calado.
No funeral, um déjà vu – seu irmão aparece acompanhado da câmera. Assim que avista o caixão, leva-a em direção ao olho e começa sua série interminável de fotos. Ele não se sente mais com força para tomar uma atitude a respeito – não depois do tanto que já havia chorado e ainda chorava. Resolveu apenas torcer para não ser capturado pela câmera de seu irmão.
No entanto, a raiva era tanta que não conseguia tirar o olho dele. Que absurdo, falta de respeito e insensibilidade frente ao momento, frente à dor das pessoas ali. Afinal de contas era a MÃE deles quem estava no caixão!
Então percebeu. Seu irmão, atrás da câmera, chorava. Quando tirava a câmera da frente, seu rosto continuava impassível, mas as lágrimas estavam lá. Sim, não era uma ilusão. Frente àquela cena, levantou-se e abraçou o irmão. Permaneceram assim, abraçados e sem trocar uma palavra, até o caixão ser enterrado e todos irem embora.
No dia seguinte, ao acordar, soube que seu irmão já havia retornado ao trabalho. Deixou-lhe um bilhete.
“Se há uma coisa que aprendi durante todos esses anos na minha linha de trabalho, foi que sou muito fraco. Não suporto a dor. Por isso evito senti-la. Descobri também que minha câmera é meu bem mais precioso, meu escudo, minha proteção da dor. Para mim, a dor é insuportável demais para ser vista diretamente pelos meus olhos”.
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